“A palavra e a liberdade estão sob ataque no Brasil”, diz Santa Cruz

O presidente da OAB Nacional, Felipe Santa Cruz, criticou as ameaças à liberdade no Brasil. Com uma fala contundente, ele apontou episódios específicos que têm revelado uma certa tendência de cerceamento a opiniões e falas que contrariem convicções governistas e a manifestações de protesto contra governantes. Santa Cruz discursou na manhã desta quinta-feira (8) na abertura do evento virtual “A Erosão da Liberdade de Expressão no Brasil”, realizado pelo Conselho Federal da OAB, em parceria com a Comissão Arns, por ocasião da 47ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU.

“A palavra e a liberdade estão sob ataque no Brasil. Esse direito fundamental, obtido com tanta luta, está ameaçado. A constante intimidação de profissionais da imprensa, em especial as jornalistas mulheres; a ameaça àqueles que pensam diferente ou são opositores políticos do governo; a perseguição criminosa, pelo Estado, a lideranças indígenas e ativistas de movimentos sociais; e a censura a cientistas acendem um sinal vermelho para os brasileiros”, disse Santa Cruz na abertura do evento. “Esse é um espaço de denúncia, mas também de compromisso. Não permitiremos que o arbítrio suplante a liberdade, que a escuridão impeça a chegada da luz, que o obscurantismo interdite nossos caminhos”, acrescentou o presidente da Ordem.

O presidente da Comissão Arns, José Carlos Dias, lembrou sua trajetória durante os anos da ditadura militar e apontou que é preciso lembrar do passado sombrio como forma de não reincidir. “A sensação dolorosa que sinto hoje é a de que o Brasil está despencando. Há mais de 50 anos, como advogado, convivo com a luta democrática. Durante a ditadura, quando fui advogado de presos políticos, sentia fervendo nas mãos a necessidade de lutar pela democracia. Conseguimos. Hoje, meu medo é que voltemos a soçobrar. Minha atuação na Comissão Nacional da Verdade revelou aos meus olhos aquilo que quero que os jovens vejam: houve uma ditadura e não devemos repeti-la. Meu medo é que essa ditadura volte a existir. Temos de nos agarrar a um basta, de todas as nossas vozes, para que isso não se repita”, afirmou ele.

A jornalista Patrícia Campos Mello citou números de casos de agressões contra jornalistas para contextualizar a situação de crescente desrespeito contra esses profissionais. “Pela primeira vez o Brasil entrou na zona vermelha do ranking mundial de liberdade de imprensa formulado pela organização Repórteres Sem Fronteira. O Brasil, hoje, está ao lado de países como Nicarágua, Filipinas, Rússia, Índia e Turquia como um lugar em que a o trabalho de imprensa é considerado difícil. O maior ataque contra a imprensa atualmente é a descredibilização e um dos maiores agressores é o presidente da República”, afirmou Patrícia, que falou sobre os dados da Federação Nacional dos Jornalistas sobre os 428 ataques contra jornalistas somente em 2020 e os episódios de agressão de Jair Bolsonaro contra profissionais de imprensa.

O influenciador digital Felipe Neto apontou que o advento das tecnologias de comunicação ofereceu a determinados grupos, que fazem defesa de ideias antidemocráticas, até então restritos, a chance de propagar suas palavras em busca de certos revisionismos históricos. “Estamos vivendo tempos sombrios aqui no Brasil. Tempos que eu, aos 33 anos, jamais achei que viveríamos. Não vivi a ditadura militar. Nasci no mesmo ano que nossa Constituição nasceu. Ao longo de minha vida ouvi falar da ditadura militar de uma maneira alarmante e cresci com o medo de que isso pudesse voltar. O que percebo ao longo das novas gerações foi uma mudança de narrativa muito forte. Uma situação em que os jovens passaram a ouvir outras pessoas fazendo discursos mais brandos a respeito da ditadura militar. Discursos que sempre vão para o caminho do reacionarismo, com o resgate de valores que foram considerados bons no passado, mas que sempre vão pelo caminho da perseguição, do silenciamento e pela predominância da maioria”, disse ele, apontando resultados eleitorais impensáveis em diversos países como consequência dessa tendência.

Constituição e lutas
O presidente do Observatório Permanente da Liberdade de Imprensa do Conselho Federal da OAB, Pierpaolo Cruz Bottini declarou que o problema das constantes ameaças à liberdade de imprensa são parte da história do Brasil. “Tratar de afronta à liberdade de expressão no Brasil é um pouco tratar da história do Brasil. Aqui, o ataque institucional à liberdade de expressão é uma realidade histórica. Se observarmos a história do Brasil veremos o desfile de transtornos, de conflitos e agressões por parte dos governos instituídos contra a imprensa”, afirmou.

Pierpaolo salientou que o desrespeito ocorre mesmo após as inovações estabelecidas pela Constituição de 1988. “A liberdade de expressão no Brasil (de acordo com a Constituição) é plena para qualquer manifestação, das mais ousadas, às mais bobocas. Diante disso, deveríamos esperar um respeito pacífico à liberdade de expressão. No mínimo, um respeito resignado daqueles que não concordam com amplitude da proteção constitucional. No entanto, vemos tristemente que isso não é tão claro no Brasil. É evidente que a liberdade de expressão aqui corre um sério risco”, acrescentou ele.

O escritor Paulo Coelho ponderou a respeito da liberdade como algo que não é dado por um governo, e no contexto brasileiro, conquistado por aqueles que lutaram pela democracia. “Quem somos nós para deixar que um governo desses possa interferir na nossa liberdade. Nossa liberdade é nossa. Não recebemos essa liberdade deles. Conquistamos nossa liberdade com sangue, suor e lágrimas”, disse ele. Coelho lembrou a história do presidente da Ordem que teve o pai, Fernando Santa Cruz, morto pela ditadura.  “Um homem que eu tenho grande admiração, o Felipe Santa Cruz. O Felipe passou por um trauma daqueles, se recompôs e hoje é o presidente da OAB. Pode exemplo melhor? Não pode”, destacou.

Paulo Coelho falou numa perspectiva diferente ao refletir sobre a forma como a repressão talhou toda uma geração e fomentou a criatividade como forma de resistência e ingrediente para permitir a expressão pública. O escritor lembrou de suas experiências pessoais depois de ser agredido por agentes do governo ditatorial brasileiro. “Acho que demorei uns sete anos para colocar minhas peças, que tinham sido rachadas, juntas novamente. Coloquei. O negócio é que essas coisas são batalhas que ou acabam com você ou te tornam mais forte. Nesse caso, me fizeram mais forte”, declarou.

O encontro foi mediado pela jornalista Laura Greenhalgh.

Assista abaixo a íntegra do evento:


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