Artigo: Senso incomum – como mostrar a um tolo a diferença entre o certo e o errado, por Lênio Streck

1. A boa solução apresentada pelo filósofo Avicena

Ouço o cientista Gonzalo Vecina alertando para a necessidade
de barreiras sanitárias e medidas fortes como lockdown para evitar uma terceira
onda vinda da Índia. Seria um desastre total, alude. Acredito.

Há poucos dias a CNN mostrou que passageiros vindos do Japão
entraram no Brasil sem qualquer restrição. Não há o menor cuidado das
autoridades alfandegarias.

Parece que as autoridades brasileiras introjetaram a tese
suicida da imunização de rebanho, cujo resultado, se desse certo, acarretaria a
morte de 10% da população e a economia totalmente quebrada. Isto é, se desse
certo, daria errado.

Vejo, além disso, fanáticos-fundamentalistas-negacionistas
dizerem que o vírus é castigo divino, baseados no Velho Testamento. Bom, para
estes, eu lhe jogaria na cabeça o Novo Testamento ou imitaria o filósofo
Avicena, que assim se referia aos tolos:

Um sábio sabe a diferença entre as coisas certas e as
erradas. O tolo ou néscio não sabe disso. Solução: bata-se nele com um chicote
até que ele grite: “basta, basta: isso é errado”. Pronto. Agora ele
aprendeu a diferença entre o certo e o errado.

Tem agora a CPI. Mas antes há medidas urgentes. Barreiras
sanitárias. E todas as medidas que se mostraram eficientes de Araraquara à Nova
Zelândia, passando por Portugal, que zeraram ou praticamente zeraram as mortes.

Mas, se a coluna é sobre Direito, por que estou falando de
sanitarismo, tolos, negacionistas, Avicena e quejandos?

Respondo: porque o Direito teria que vir antes e evitar essa
tragédia toda. Mas ele tem fracassado. Por quê? Por causa dos lidadores.

Só para usarmos um exemplo: Está na CF, nas leis e
regulamentos essa questão das barreiras sanitárias. E o que faz o Ministério
Público em relação a isso?

E atenção: Por que ninguém pensou em obrigar o governo,
ainda em 2020, a importar vacinas? Em um país de ativismo judicial, quem sabe
uma boa dose de judicialização da política? Observação importante (leia a
bula): se você não souber a diferença entre os dois conceitos, pare a leitura
por aqui.

Outro detalhe: o que fazem o Ministério Púbico e a
Defensoria que não cuidaram do gap entre a primeira a segunda doses? O Min.
Lewandowski teve de avisar ao Brasil todo que a falta da segunda dose é
improbidade administrativa (no mínimo). Mas o MP e a DP não sabiam disso? No RS
está um caos. A cidade de Porto Alegre parou na manhã do dia 5. Disputava-se
uma dose da Coronavac entre dois ou três utentes. Patético. Trágico.

Mas, então: como fiscais — a
Defensoria1 ganhou a prerrogativa de entrar com Ação Civil Pública,
lembram —, não deveriam, o MP e a DP, ter exigido das autoridades que para cada
dose aplicada, uma deveria ser reservada para a segunda, sob pena de acontecer
o que está se está vendo agora? Gente já vacinada com a primeira dose há mais
de 30 dias e sem perspectivas da segunda. Isso é criminoso. Em vários estados.

Na verdade, se fizermos um rescaldo, o Direito foi chamado à
colação, mesmo, uma só vez. Explico: imaginem se o STF tivesse negado a ADPF
652, impetrada pela OAB? Imaginem se tivessem deixado a cargo da União o
combate à pandemia? A OAB e o STF salvaram o país. Ou boa parte do país.

Mas em outras o Direito chega tarde ou nem chega. Aqui outro
exemplo: qual é o sentido de o presidente da Câmara ter o poder
discricionário-arbitrário de resolver sobre pedido de impeachment? Ora, se esse
poder é político — e tem sido — então está demonstrado que o Direito não pode
entrar. Logo, não há Direito. Há política. Logo, não há Direito.

2. Vem aí uma nova onda ceticista no direito

Por isso, minha preocupação: para além da terceira onda
(indiana) que pode vir aí e para além da própria incapacidade de as autoridades
lidarem com a atual onda pela qual chegamos a 415 mil mortos, temo que virá
pela frente uma segunda grande onda de ceticismo com relação ao Direito.

Explico. Repete-se a história como uma farsa. Sim,
repetiremos o que ocorreu pós-segunda guerra. O Direito fracassara e surgiram
duas grandes “correntes”: os ceticistas que não mais acreditaram no
Direito (e isso é assim até hoje com os pragmatismos em geral) e os, digamos
assim, formalistas, que continuaram a acreditar na possibilidade de o Direito
poder segurar a política e implementar a democracia. Esse é o lado da força
normativa das constituições.

A Europa é um bom exemplo de que o Direito pós-bélico tem
funcionado para segurar a política. Porém, países periféricos têm penado com a
incapacidade de o Direito enfrentar seus predadores. O realismo jurídico — tese
dominante no Brasil — tem sido o principal desses predadores. E que inclui, por
obvio, como alimentos do realismo, a discricionariedade, o livre convencimento
e todos os ingredientes que promovem o protagonismo de quem decide.

Uma coisa importante, para melhor esclarecer: se o Direito é
o que quem decide diz que é, então ele já não é mais nem Direito. Ele é que foi
decidido. Logo, o cidadão tem de torcer para que se tenha bons decididores. E
quando quem decide, ou quem insta a quem decide, politizam-ideologizam o
Direito? Resposta simples: tudo fica paralisado. É o que ocorreu no Brasil.
Quem deveria usar o Direito para salvar vidas e obrigar o Poder Executivo a não
se omitir, nada ou quase nada fez. Fez até algo no varejo; mas pouquíssimo no
atacado. Aliás, foi a OAB, órgão não governamental, que ingressou com a ação
mais importante durante a pandemia.

Por isso, é possível dizer que no Brasil, tivessem as
autoridades agido por princípio (arché), hoje não estaríamos praticando uma
cotidiana eugenia à brasileira: na falta de equipamentos, pessoas com
comorbidade e idosos são preteridos em favor de jovens. Fracassamos em termos
de dignidade. Pior: gente sendo amarrada, medievalisticamente, para ser
entubada. Onde estão os guardiões da Constituição?

Tivessem agido sob o Império do Direito, o Ministério
Público e as defensorias (e há outros órgãos-instituições públicas que ficaram
assistindo) teriam agido de modo a instar o judiciário e especialmente a
Suprema Corte a se adiantar à tragédia. Há fortes indícios de que a
ideologização da pandemia tenha feito com que o Ministério Público, sempre
pródigo em ingressar com ações judiciais para prestação de saúde, tenha
refreado sua conduta. Puxou o freio. Parece que a preocupação maior foi em
relação ao direito fundamental de ir à missa e aos cultos, se me permitem uma
(só a primeira) dose de dupla ironia.

O país ficou tão fragmentado que juízes decidiram contra
lockdown. E contra as medidas restritivas, tendo por apoio o Ministério
Público. O Governo chegou a ingressar com a ADI contra decretos estaduais.

Qual é, assim, o papel do Direito? Para que serve a
Constituição que tem nítido caráter compromissório e dirigente? O Brasil é uma
República que visa a…!

No Brasil de hoje, no limite, eu mesmo consigo dar razão, à
primeira vista, ao desafio do cético. Como foi no caso na Segunda Guerra. Ora,
para que serviu o Direito? Como é possível que o Direito fosse deixar isso
acontecer? Agora aqui no Brasil me pergunto a mesma coisa.

Mais: de que modo o próprio Direito serviu para piorar o
cenário? Resposta: porque as instituições que materializam isso a que chamamos
cotidianamente de “direito” foram no mínimo coniventes. Não houve
apuração da conduta das autoridades responsáveis; não houve responsabilização
institucional. Teve que vir uma CPI para tentar, veja-se, tentar apurar
responsabilidades que já deveriam ter sido apontadas.

Perguntem-se: o que foi feito do artigo 267 do Código Penal?
Letra morta como o que pune o jogo do bicho?

3. Para o que serve essa coisa chamada “direito”?

A pergunta cética acaba sendo óbvia, como óbvia foi depois
de 1945: para que serve essa coisa camada Direito, afinal, que não é capaz de
constranger e controlar a morte como política de Estado?

Acontece que precisamos resistir ao desafio do ceticismo.
Porque, paradoxalmente, é esse ceticismo que faz com que o direito não sirva
para nada.

Porque, dia após dia, a realidade joga em nossa cara que o
Direito — assim compreendido — não serve para nada. E acaba não servindo mesmo.

Não sendo compreendido corretamente, o Direito pode mesmo
servir como instrumento para qualquer fim: até para matar.

Agora, o Direito pode ser muito mais que isso. O Direito é
muito mais que isso.

Se não for assim, fracassamos.

Talvez seja ingenuidade minha, como o cético dirá que é.
Pode ser. Mas eu sigo com meu otimismo metodológico: a vitória do ceticismo é
uma vitória de Pirro, afinal. Porque, se estiver correto, perdemos todos.

1Veja-se: não estou falando de ações isoladas de
defensores em favor de réus ou conjunto de réus durante a pandemia. Falo de
algo bem maior. O texto é autoexplicativo.

Lênio Luiz Streck é jurista, professor de Direito
Constitucional, pós-doutor em Direito e membro da Comissão Nacional de Estudos
Constitucionais da OAB

 

 


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