Combater a fome é exigência constitucional e ética
Por Daniel Souza e Felipe Santa Cruz
As cenas expostas em reportagem do GLOBO são terríveis. Cidadãos que vivem na nossa cidade, o Rio de Janeiro, ou nas proximidades formam fila para garimpar, entre ossos e pelancas descartadas, algo para comer.
A implacável realidade é descrita pelo motorista do caminhão que carrega as sobras:
— Tem dias que chego aqui e tenho vontade de chorar. Um país tão rico não pode estar assim. (…) Antes, as pessoas passavam aqui e pediam um pedaço de osso para dar para os cachorros. Hoje, elas imploraram por um pouco de ossada para fazer comida.
A fila da fome que acontece no Rio espalha-se pelo país. Estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) diz que 116,8 milhões de pessoas conviveram com algum grau de insegurança alimentar no final de 2020, quando foi realizada a pesquisa, o que corresponde a 55,2% dos domicílios, ou seja, metade dos lares brasileiros. São 19,1 milhões de brasileiros passando fome, ainda segundo o levantamento.
Não chegamos a essa crise humanitária por acaso. Ela foi construída com ações e omissões do governo federal que resultam no enfraquecimento da distribuição de renda. Mais de dois milhões aguardam na fila para receber o Programa Bolsa Família, houve redução radical de gastos em políticas públicas fundamentais, como o Programa Cisternas, o Programa Nacional de Alimentação Escolar e o Programa de Aquisição de Alimentos, além de um auxílio emergencial de valor insuficiente para a alimentação da família brasileira em meio a` pandemia. A esse cenário, soma-se a disparada da inflação, que atinge em cheio os mais pobres, com altas significativas em itens básicos como alimentos e gás de cozinha.
As cenas descritas pelo GLOBO e os dados expostos pela Rede Penssan explicitam a violação do direito fundamental a` alimentação adequada e suficiente, pressuposto para a dignidade da pessoa humana.
Diante da inércia no enfrentamento dessa situação de gravidade extrema, a Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para obrigar o governo federal a implementar políticas para combater a fome no país. A ação, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), foi movida a partir de um pedido da Ação da Cidadania, entidade fundada em 1993 pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, e uma das principais referências do país em análise e pesquisa sobre segurança alimentar e nutricional.
Cabe ao Poder Judiciário determinar a observância das diretrizes constitucionais que vinculam a administração pública no planejamento e na execução de políticas públicas, especificamente, ao direito à saúde, cuja alimentação adequada e suficiente é pressuposto.
Por meio dessa ADPF, OAB e Ação da Cidadania confiam que seja possível tomar as medidas legais cabíveis para combater o pior flagelo da fome da história recente do Brasil. Estão na Constituição de 1988 os fundamentos legais, éticos e humanos para cobrar do poder público as necessárias e urgentes ações para garantir o direito universal à alimentação.
Diante da fome, da política de morte e desrespeito ao ser humano, não podemos nos calar. Quem tem fome tem pressa.
Daniel Souza – Presidente do conselho da Ação da Cidadania
Felipe Santa Cruz – Presidente da OAB
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