ConJur: “Fúria contra o direito de defesa também prejudica o combate à impunidade”, diz presidente da OAB

O ConJur publicou no último domingo (5) uma entrevista com o presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz. Clique aqui para ler no site Consultor Jurídico ou confira abaixo a íntegra da entrevista:

O Brasil não vive, hoje, um momento positivo. Intolerância, ódio, onda punitivista, desemprego e violência penetraram a sociedade e parecem não ter fim. Em meio a isso, a Ordem dos Advogados do Brasil tem a difícil missão de incumbir-se de uma atuação contramajoritária, sendo um canal para grupos vulneráveis e o arauto do direito de defesa, afirma Felipe Santa Cruz, presidente do Conselho Federal.

Desde a posse, conta, ele tem sido procurado por todas as forças da sociedade, mas, especialmente, por aqueles preocupados com o que entendem por violações e instabilidade do quadro institucional brasileiro. Em entrevista à ConJur, Santa Cruz diz que o dever como presidente da Ordem é também um ônus nesta quadra histórica: é preciso estar em estado de atenção constante.

Neste início de mandato, ele pediu ao Supremo que adiasse o julgamento das ações que tratam da possibilidade de execução da pena depois de condenação em segunda instância. O tema estava pautado para 10 de abril, e a solução era aguardada havia meses. O presidente da OAB explica que a percepção de que há uma “fulanização” do caso (a situação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva poderia ser impactada a depender da decisão) fez com que a diretoria entendesse que seria melhor aguardar um tempo, a fim de aumentar as chances de que o Plenário decida pela literalidade, ou seja, pelo trânsito em julgado como requisito para a prisão.

“A tese não está sendo encarada como deve ser. O que é um absurdo. Juridicamente, um absurdo. É por isso que eu falo em estratégia processual”, disse. De acordo com ele, é preciso enfatizar que não se está julgando o ex-presidente Lula, unicamente, nas ADCs de relatoria do ministro Marco Aurélio. “Nós estamos tratando de 160 mil pessoas hoje no Brasil nessa situação.”

Santa Cruz diz que o combate aos crimes de colarinho branco e à impunidade estão levando ao rebaixamento do direito de defesa, o que precisa ser combatido com um trabalho que ele chama de hercúleo, mas que tem de ser feito em nome do processo civilizatório.

“Eu, hoje mais do que nunca, acredito, e principalmente em matéria penal, que é importante o texto na sua literalidade. O texto legal nos traz essa segurança. O juiz, o promotor, o advogado militam no seu dia a dia em torno do texto legal, da Constituição e das leis. Não adianta criarmos um quadro em branco onde todos os dias um juiz numa comarca pequena começa a escrever o processo constitucional brasileiro.”

O presidente do Conselho Federal, que já foi pessoalmente atacado depois de declarar que a “lava jato” não deve ser um livro interminável, tem se colocado contra o que chama de milícias digitais. No entanto, diz não ter um perfil que se encaixe na polarização brasileira atual. Prefere ponderar, dialogar. Ser filho de um desaparecido político do regime ditatorial que vigorou de 1964 a 1985, por exemplo, não seria o suficiente para classificá-lo num espectro político específico.

Ele, contudo, mantém posições firmes em temas que nos dias de hoje são tidos por polêmicos. Faz uma defesa enfática dos direitos humanos, acredita que o papel do Direito deve ser retomado como resguardador dos direitos sociais e analisa o momento atual como de uma “fúria contra o direito de defesa”. Nesse sentido, a OAB deve, para ele, se esforçar para equilibrar o pêndulo que se deslocou para o lado da radicalização da persecução.

Leia a entrevista:

ConJur — Há analistas que falam que estamos vivendo o fim da era dos direitos. O senhor concorda?

Felipe Santa Cruz — O que está acontecendo, claramente, é a aceitação por uma parcela da população de uma lógica de cálculo, financeira, financeirizada. Vou dar um exemplo. Na reforma trabalhista em momento nenhum se discutiu, efetivamente, o direito social. Qual é o manto protetor da Justiça do Trabalho para os mais pobres, qual é a importância de determinados direitos? Houve mudanças até em questões sobre lactantes, grávidas. Ou seja, o que o Direito do Trabalho faz de mais bonito, que é a defesa do direito social, não fez parte do debate público. É um empobrecimento do debate pela financeirização dele.

Na Alemanha se está discutindo estimular o homem a tirar licença após o parto da mulher. É uma forma de romper preconceitos da sociedade. Se a mulher fica em licença, é X, se é o homem, é X+Y. É o direito sendo utilizado para transformação social, proteção. A finalidade maior ao regular a vida é empenhar-se pelo menos pela expectativa de felicidade do povo. Nós nunca vamos poder ter o fim da era dos direitos porque o Direito atinge fortemente a vida do cidadão. Mas eu acho, sim, que, no Brasil, e não só no Brasil como em vários países do mundo, nós estamos financeirizando os direitos.

ConJur — A reforma da Previdência repete esse processo da trabalhista?

Felipe Santa Cruz — A Previdência agora é uma batalha clara disso. O governo, com a lógica fiscal, fala em R$ 1 trilhão de economia. É o número positivo da Previdência para o governo. Agora, quando a gente desce para o campo dos direitos — o benefício de prestação continuada, o atendimento à pessoa que tem deficiência, a aposentadoria rural, quando menos de 1% dos brasileiros trabalha com carteira assinada acima dos 65 anos —, aí vamos olhar a situação concreta. Nos cabe lembrar que ali estão envolvidos direitos e, em especial, direitos de populações vulneráveis economicamente. É esse debate que nós, da área jurídica, temos que recuperar. Recuperar a nossa capacidade de comunicar o que o Direito busca proteger e quanto custou para ele ser construído.

No Direito do Trabalho se fez uma reforma trabalhista que não gerou um só emprego, uma reforma processual. Não que não precisássemos ou não pudéssemos modernizar a legislação trabalhista, mas tentar fragilizar os sindicatos, a Medida Provisória 873 [que acaba com a contribuição sindical na folha de pagamento], não levar em consideração que sindicatos são formas de organização dos mais fracos, dos trabalhadores e é através dessas formas de organização que eles se inserem na sociedade e têm voz… É como se esquecêssemos todo o processo, que é jurídico e histórico, até aqui. Essa fragilização do debate público, essa simplificação é que pode estar existindo. Mas não imagino que esse é o fim da era dos direitos. Seria um poder absoluto do mercado? Eu acredito que não, porque sempre vai ter a busca do ser humano pelo direito.

ConJur -— No discurso de posse, o senhor disse que o papel da OAB é no campo do Direito, não da política. Ao mesmo tempo, citou vários temas, como as reformas, a intolerância política, o ódio na sociedade, uma tônica bastante política. Será uma temática mais forte da sua gestão?

Felipe Santa Cruz — Eu acho que, necessariamente, o momento do Brasil é esse. Há um governo que é o primeiro governo conservador, digamos, puro-sangue, da história do país, fora os regimes ditatoriais. Na economia, tem uma pauta liberal, que gera uma discussão interessante sobre o futuro do país sobre privatização, reforma tributária. Todos nós estamos interessados nessa discussão, mas, por outro lado, também tem uma pauta extremamente conservadora nos costumes. Como disse o professor Miguel Reale numa entrevista, com a mentalidade do confronto, um espírito um pouco autoritário, como que reeditando a Lei de Segurança Nacional. Isso vai fazer, no campo do Direito, que tenhamos que discutir todos esses temas. Eu tenho sido procurado cotidianamente por todas as forças da sociedade. Minha agenda está absolutamente lotada… Professores universitários, jovens, setores religiosos, todos preocupados com uma série de declarações que são dadas, que trazem certa instabilidade, insegurança ao quadro institucional brasileiro.

ConJur — É uma gestão de oposição?

Felipe Santa Cruz — É só contenção, porque todos nós concordamos que o momento do Brasil não é um momento positivo, principalmente para os mais pobres. Vamos concordar com o que tivermos que concordar, fazendo os nossos ajustes no aspecto técnico, pedagógico, lembrando às instituições a origem de determinados instrumentos. Quando eu digo que nós não somos da esfera da política, significa que a nossa oposição também será técnica, de contribuição jurídica. Nós não somos um partido de oposição. Nem de situação. Essa é a forma que a Ordem tem de servir o país nesse momento.

ConJur — Durante a ditadura, quando foi presidente da OAB de 1977 a 1979, Raymundo Faoro notabilizou-se também pela defesa do Estado de Direito. Qual é o papel da OAB nesta quadra histórica?

Felipe Santa Cruz — É justamente essa defesa. Primeiro é ser o canal de defesa da sociedade civil, que está muito carente desses canais, está preocupada. Os militantes de direitos humanos, as forças sociais, as universidades precisam de um canal no mundo jurídico por meio do qual possam expressar suas preocupações. A Ordem sempre foi esse canal, a liderança da sociedade civil organizada. Esse é um papel que nós vamos desempenhar tendo como finalidade maior a defesa do Estado Democrático de Direito e da democracia. A democracia brasileira gerou uma Constituição que é belíssima, de primeiro mundo, como diz o ministro Ayres Britto. E nos preocupa que todo esse processo histórico às vezes seja questionado em virtude da frustração da população por causa da situação econômica, que é conjuntural. 

ConJur — E para o senhor, pessoalmente, como é ser presidente da OAB justamente nesse momento de governo conservador e que faz referências ao regime de exceção o tempo todo?

Felipe Santa Cruz — Essa é a parte dura. Eu acho a idealização do regime de exceção uma das coisas mais injustas do quadro atual. O Brasil só avançou com a democracia: transparência total, liberdade de imprensa, a classe dominante do país, quando processada e comprovada a culpa, sendo presa, coisa que nunca tivemos. Isso aí é a democracia. É a liberdade de atuação do Ministério Público dada pela Constituição de 1988. É injusto com esse processo democrático, que é recente, colocar nele a culpa pelos problemas do Brasil. Pelo contrário, é dele que tem nascido a força dinâmica que quase que sozinha está enfrentando todos os problemas históricos do nosso país. Então, a grande tristeza que eu tenho no momento é ver parcelas da sociedade brasileira que só foram incluídas por conta da democracia muitas vezes se opondo à democracia. E aí eu falo do trabalho pedagógico, de mostrar para as pessoas como foi duro conquistar essa democracia, quantos morreram, e como é horrível viver num país onde há o silêncio. A imprensa não pode trabalhar, os advogados não podem atuar, os artistas têm medo. Por isso o nosso dever é ficar vigilantes. E aí… Tem seu ônus de ser presidente da OAB neste momento, porque é um estado permanente de atenção. É um momento de crise e exige da gente muito mais.

ConJur — E o senhor já foi pessoalmente atacado pelas posições manifestadas, como sobre a ‘lava jato’ não poder ser um livro interminável.

Felipe Santa Cruz — Já. É, eu tenho um problema por nunca aceitar uma resposta muito simples. Não sou nem completamente contra nem a favor a nada na minha vida. A minha vida sempre foi duvidar. Às vezes é difícil, e eu entendo isso, para as pessoas entenderem a minha posição. Eu sou dificilmente encaixado nesse Fla-Flu que está posto. E aí buscam a minha posição na vida: ‘Ah, foi mais à esquerda na juventude’, mas quem não foi? Vários pensadores dizem que quem não é mais progressista na juventude, na verdade, é um insensível, né? ‘Ah, o pai desapareceu na ditadura, então é um guerrilheiro infiltrado…’. Não é a realidade da minha vida. Meu pai não foi guerrilheiro — e não que isso seja um demérito a quem tenha optado pela luta armada, havia uma razão histórica para isso. Mas não era. Meu pai era um estudante de Direito. Então tentar me encaixar por um pai que eu nem pude conhecer, mas admiro e amo, é um esforço enorme para tentar me rotular. E acho que tento aprimorar a minha comunicação, dizendo que eu prefiro continuar discutindo o mérito das coisas.

ConJur — Mas esses ataques fazem parte não só do seu perfil, mas do momento do país, que precisa ser enfrentado…

Felipe Santa Cruz — Sim, há uma milícia. Isso eu aprendi, entendi nesse processo. Ela é descolada da realidade da vida. No meu caso, eu não sou uma pessoa pública, que todo mundo conhece. Eu ando no supermercado, entro no avião, sou um advogado. Ela faz um estrago, digamos, no mundo cibernético. E o que me preocupa nela é a que ela serve, porque nós somos a 10ª economia, 9ª, às vezes 7ª do mundo, há interesses. Há interesses poderosíssimos em jogo, financeiros. Essa milícia gera permanentemente uma tensão na sociedade brasileira. O brasileiro está muito ligado às redes, culturalmente. O brasileiro é dos povos do mundo mais conectados. E isso pode estar sendo manipulado. A manipulação do debate público é minha grande preocupação. Calar quem não concorda, manipular mercados gerando lucro financeiro, manipular as pessoas para esse pensamento de ódio, usando a absolutamente compreensível insatisfação que as pessoas estão no momento, porque 60% das famílias brasileiras estão endividadas, 13 milhões de brasileiros estão desempregados, mais tantos milhões estão desalentados, aumento de suicídio na juventude, de violência nas escolas. O quadro leva a essa busca de soluções fáceis.

ConJur — Neste ano a ‘lava jato’ completou cinco anos. Que tipo de impacto a operação e essa onda punitivista têm para a democracia?

Felipe Santa Cruz — Eu acho que a ‘lava jato’ é uma operação, se olhar o histórico dela, muito positiva. Talvez seja um marco do fim da impunidade da classe dominante brasileira. O que nós temos preocupação é que todos esses instrumentos, mesmo que tenham uma finalidade positiva, de modernização do Direito Penal, de maior agilidade do processo, que sejam acompanhados também por um fortalecimento da defesa. Aí a OAB tem um papel que vai ser sempre contramajoritário. É difícil falar pelo acusado, e a sociedade tem esse clamor da punição, principalmente nesses momentos de crise. Aí nos cabe ponderar: poderia ser seu filho, poderia ser seu marido, a pessoa não pode ficar de forma provisória presa por não sei quantos anos até que fale, isso é uma forma de tortura. A delação tem, sim, que ser acompanhada de outros documentos porque ela desmoraliza, ela condena, pré-condena, julga antecipadamente. Todos esses esforços que estamos fazendo aqui cotidianamente é para equilibrar, dar paridade num pêndulo que se deslocou para a acusação, de forma compreensível numa crise aguda, com um processo histórico de impunidade no país, principalmente dos mais ricos, porque o pobre já respondia. Qual é o pobre no Brasil, de assalto a mão armada, que não está preso? Agora, como nós podemos aproveitar esse momento para discutir o direito de defesa? Esse é um trabalho digamos que hercúleo.

ConJur — Há quem diga que nesse processo houve um rebaixamento do direito de defesa…

Felipe Santa Cruz — Há, houve.

ConJur — … E da advocacia. O senhor concorda?

Felipe Santa Cruz — Não, não da advocacia, porque ela sempre vai ter o papel de ser porta-voz, vai achando suas soluções. Acho que há, sim, uma fúria contra o direito de defesa, o que é muito grave, porque, na hora que eu calo o direito de defesa, aí, sim, eu não tenho um processo civilizatório. As possibilidades de injustiças e de erros aumentam exponencialmente. Nós já estamos vendo que muitas empresas não se recuperaram. Pessoas que podem pagar têm tratamento diferenciado de quem não pode. Nós estamos vendo delações que depois não se confirmam, que envolvem nomes de pessoas que não vão mais recuperar plenamente a sua imagem. São preocupações que nós temos até para preservar o processo de fim da impunidade que gerou a ‘lava jato’. Talvez no futuro vão dizer ‘obrigado, OAB. Obrigado, advocacia’. Com o equilíbrio desse pêndulo, o combate à impunidade ganha institucionalidade. Essa paridade gera legitimidade do processo como um todo.

ConJur — Há momentos em que essa fúria vem da própria magistratura, do Ministério Público? Casos, por exemplo, como o do criminalista Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, em que foi autorizada a quebra de sigilo do escritório dele, o que também não foi a primeira vez, em 2015 teve uma decisão semelhante.

Felipe Santa Cruz — Eu não gosto quando a gente generaliza. ‘A magistratura’, ‘a advocacia’. Acho que tem uns casos pontuais em que sim, e para isso a OAB tem as suas estruturas, a magistratura tem as suas estruturas. Talvez cobrar mais do CNJ, talvez a OAB ser cada vez mais dura… No caso do Mariz nós reagimos imediatamente. Alguns colegas nossos não concordaram comigo, dizendo ‘não, porque tem que esperar a decisão’. Sabe quando é que apareceu a decisão?

ConJur — Não apareceu.

Felipe Santa Cruz — Até hoje ninguém nunca viu essa decisão. Por que no in dubio eu vou ficar contra o advogado, que tem um histórico, como o doutor Mariz, ou como qualquer outro colega? Ter a presunção de que está agindo corretamente e tem ali o seu sigilo violado, expondo os seus clientes… Eu tenho que agir duramente. Então, cada um fazendo o seu papel. Eu sei que sou incompreendido quando faço isso, muitas vezes por parte, inclusive, da opinião pública. Mas aí eu estou agindo em defesa da advocacia, em busca, digamos assim, de um bem maior. A verdade é o seguinte, nós causamos a reflexão do magistrado, a reconsideração e, até hoje, não se viu a decisão. Mas eu estou muito satisfeito que tenhamos reagido da forma que reagimos.

ConJur — Não é um convívio que está mais delicado?

Felipe Santa Cruz — É um convívio que tem conflitos desde que o mundo é mundo. Ministério Público, advogado, magistratura, desde que o mundo é mundo, têm conflitos, sejam pequenos conflitos numa comarca do interior, sejam os grandes conflitos nessas operações que ganharam uma dimensão enorme nos últimos anos. A nossa luta é uma luta cotidiana, de equilibrar isso. Da nossa parte, sabendo que muitas vezes somos contramajoritários.

ConJur — E como enfrentar, então, a opinião pública?

Felipe Santa Cruz — Mas a própria opinião pública quando vê como é a situação carcerária se comove. A própria opinião pública quando vê que um inocente pode estar sendo condenado se comove. Por exemplo, quem é um adversário histórico da OAB? Eduardo Cunha. Está preso há mais de dois anos, sem sentença. Eu me comovo. Está errado, fragiliza o Direito no Brasil. ‘Ah, mas você está defendendo o Eduardo Cunha’. Eu estou. Esse é o nosso papel. Sobral Pinto não defendeu os comunistas? Agora no Brasil se resgatou essa tipificação, ‘os comunistas’. Pois o nosso maior advogado defendeu os comunistas. Esse é o nosso papel.

ConJur — E nesse contexto, por que o pedido de adiamento das ADCs na execução de pena em segunda instância?

Felipe Santa Cruz — Estratégia processual. A nossa finalidade é fazer valer a Constituição. A parte da estratégia processual é analisar o momento em que se leva uma causa à apreciação da magistratura. Houve uma avaliação nossa aqui, da diretoria recém-empossada, de que aquele não era o melhor momento. Nós precisávamos fazer essas nossas avaliações. É uma diretoria nova. Havia um quadro claramente que não era favorável para esse julgamento agora, na nossa visão. O que não significa que a coisa vai se adiar indefinidamente. O caso foi fulanizado nessa busca louca por simplificações.

ConJur — A fulanização é sobre o ex-presidente Lula? O caso Lula influenciaria…

Felipe Santa Cruz — Muito, muito. Há uma fulanização da tese, o que a prejudica. A tese não está sendo encarada como deve ser encarada. Influenciaria muito no resultado. O que é um absurdo. Juridicamente um absurdo. É por isso que eu falo em estratégia processual. Algum de nós sabe a composição, qual o resultado final do Supremo? Quem tiver essa resposta… Então. Que a gente possa nos próximos meses, espero eu ainda no próximo semestre, construir, ter uma vitória, que venha realmente pacificar o tema, e esse é o nosso trabalho.

ConJur — No próximo semestre?

Felipe Santa Cruz — Ah, eu trabalho para que seja ainda neste ano, de preferência no primeiro semestre. O país clama por segurança jurídica, por estabilidade. Parte da nossa estratégia como advogados no sentido mais claro da questão é essa. O que é muito importante nesse caso é que fique claro que não está se julgando o presidente Lula, unicamente. Nós estamos tratando de 160 mil pessoas estimadas hoje no Brasil nessa situação. Acabou de sair no Ceará um relatório sobre a tortura no sistema carcerário. O Supremo já reconheceu que nós temos masmorras no país, que elas são fonte infinita de mão de obra para o crime organizado. A pergunta é: esse encarceramento em massa melhorará o país? Outra coisa, todas essas propostas que estão na mesa são propostas de melhorias da segurança pública?

ConJur — O senhor está falando do pacote ‘anticrime’ do ministro da Justiça, Sergio Moro?

Felipe Santa Cruz — Eu vim de um Estado onde a segurança pública está em crise. Tudo o que aprendi nos últimos meses, inclusive com o general Braga Neto, que fez a intervenção no Rio de Janeiro, é que nós precisamos de planejamento, frota, logística, polícia bem treinada, remunerada dignamente. Nada disso está em discussão no pacote. O que está em discussão é o aumento carcerário, uma redução do direito de defesa. Não me parece que isso tenha mudado nada em lugar nenhum. Vai ter uma espiral de condenação, principalmente dos mais pobres. ‘Ah, o modelo é dos Estados Unidos’. Os Estados Unidos têm 5% da população mundial, mas é responsável por 25% da população carcerária, quase na sua totalidade de negros e pobres. É esse o modelo que nós temos como paradigma? Encarceramento em massa dos mais pobres? Eu sei que muita gente acha que sim. Eu sigo sendo dos que dizem que não.

ConJur — O senhor já disse também que a Constituição é muito clara quando diz que a execução da pena deve acontecer com o trânsito em julgado. O entendimento então não mudou?

Felipe Santa Cruz — Não, não mudou. Há uma discussão aqui sobre a questão de onde se dá esse trânsito em julgado, se no STJ, se não. Há uma discussão interna. Foi uma das razões, inclusive, do nosso pedido de adiamento. Agora, nada muda o fato de que nós estamos preocupados. Olha, isso nasceu na minha geração. Nós olhávamos os juízes progressistas em comportamento e criamos uma tese belíssima do direito alternativo, do direito achado na rua. De lá pra cá, você tem uma magistratura, seja conservadora ou progressista, que tem pouco apreço pelo texto legal e constitucional. Isso está trazendo insegurança em todos os campos. As decisões são volúveis, mudam com o tempo, trazendo à população um certo estarrecimento. Eu, hoje mais do que nunca, acredito, e principalmente em matéria penal, que é importante o texto na sua literalidade. O texto legal nos traz essa segurança. O juiz, o promotor, o advogado militam no seu dia a dia em torno do texto legal, da Constituição e das leis. Não adianta criarmos um quadro em branco onde todos os dias um juiz numa comarca pequena começa a escrever o processo constitucional brasileiro.

ConJur — Adiar esse julgamento não ampliaria essa indefinição?

Felipe Santa Cruz — Eu acho que as grandes questões do país, e essa é uma delas, todas estão na pauta do Supremo. Eu, por exemplo, tenho mais pressa na questão da correção da TR do IPCA, que foi suspensa há semanas impactando 150 mil processos, quase todos de pessoas pobres, que estão atrás de seu benefício. Um país que tem essa figura medieval que é a figura do precatório, um país que tem o calote sistêmico às suas dívidas, principalmente com os mais pobres. Essa, por exemplo, é uma questão que eu quero ver na pauta. Temos que ter serenidade. É muito importante também isso nesse momento, que é a preservação da imagem do Supremo Tribunal Federal.

ConJur — Quanto às questões da própria OAB. Por que o senhor acha que o TCU retomou a discussão da análise das contas da OAB mesmo depois da decisão do Supremo proibindo?

Felipe Santa Cruz — Primeiro, eu acho que a OAB tem que evoluir muito na transparência de suas contas. Nós temos que salvaguardar o que há de mais bonito, que é a independência. Raymundo Faoro defende essa independência porque ela tem uma finalidade. Nós servimos para sermos contramajoritários. Se formos apenas um administrador de prédios e subseções, temos mais é que prestar contas ao TCU mesmo. Porque nós somos gestores de um sistema muito grande. Agora, como nós construímos uma solução para manter a nossa independência do Estado? Como fica na hora que os tribunais passarem a decidir, por exemplo, se podemos investir num congresso de direitos humanos, num congresso de defesa do direito da mulher, numa campanha contra o feminicídio, sobre posições que tomamos que desagradam o Legislativo, a quem o TCU responde, ou que desagradam ao Poder Executivo? Eu tenho que manter essa independência, que é da história da advocacia brasileira.

Na outra ponta, eu tenho que aceitar que hoje é um sistema muito complexo, com mais de mil subseções, que administra dinheiro e nós temos que nos modernizar. Não aceito a tese de que a OAB não tem que ter nenhuma prestação de conta. Mas que ela tem que prestar contas acima de tudo à advocacia. Para isso, tem que melhorar muito, mas muito mesmo. Nós vamos fazer isso nesta gestão. Transparência, portais, manuais de contratação, manuais de prestação de contas… Evoluir, mostrar onde está sendo destinado cada real nosso. Auditoria, por exemplo. Estamos preparando tudo aqui, através de um provimento que é o 185, já do final da gestão do Lamachia, para uma possibilidade de migrarmos para um sistema de auditoria externa e essa auditoria ser entregue a todos, principalmente ao advogado, para que ele saiba para onde está indo o seu dinheiro. Eu não aceito esse discurso só legal: ‘Vou ao Supremo porque a posição histórica é não prestar contas’. É um desserviço à advocacia. Eu tenho conversado, sim, com o TCU. A OAB não deve nada a ninguém. A nossa maior preocupação é manter a independência política com um sistema de prestação de contas que seja satisfatório. Crescemos muito. Temos hoje quase 10 mil empregados no Brasil inteiro e não somos mais uma pequena sala na rua Marechal Câmara, como éramos no tempo do doutor Raymundo Faoro.

ConJur — Os números são claros hoje? Existe um levantamento sobre inadimplência, por exemplo?

Felipe Santa Cruz — Existe. A advocacia hoje está muito empobrecida, a inadimplência está alta e ela cobra da OAB um investimento muito grande, por exemplo, em salas de atendimento. Nós temos milhares de salas de atendimento funcionando em comarca do interior com funcionário, cafezinho, computador. Nós ocupamos esse papel que o Poder Judiciário não fez, de ser a porta de entrada do processo eletrônico. Nós somos. Nesse exato momento há uma rede, por exemplo, de auxílio à prerrogativa organizada no Brasil inteiro. Isso tudo tem gasto. Tem seminário no Ceará sobre a situação do direito carcerário no Brasil, eu tenho um representante da OAB lá. Isso é gasto. Precisamos profissionalizar isso, principalmente a prestação de contas. A nossa missão nós fazemos com austeridade, trabalho, sacrifício. Nós temos que compreender que os tempos são de transparência total, inclusive para preservar a nossa entidade.

ConJur — Outra questão que volta à tona vez ou outra é a existência do Exame de Ordem. Tem que haver alguma reformulação?

Felipe Santa Cruz — Eu te pergunto, imagina 3 milhões de pessoas… Hoje, nos bancos escolares brasileiros, nas faculdades de Direito são 880 mil inscritos. Não há planejamento do Ministério da Educação. Confundem a OAB com o Ministério da Educação. Essas pessoas, após formadas, vão tratar sobre liberdade, honra, família… Deus sabe, nestes anos de OAB, o que eu vi de danos que um mau advogado pode causar na vida de um cidadão. Pode destruir a vida de um cidadão, como um médico pode matar. Da mesma forma ou pior. Então eu pergunto a quem está nos lendo: alguém acredita na qualidade plena deste profissional que sai desses bancos escolares, desse modelo mercantilizado que foi criado no ensino brasileiro? Eu tenho certeza que não. Se a OAB se retirar dessa conta, sabe o que vai acontecer? Ela será uma entidade rica. Três milhões de pessoas passarão a pagar anuidade. É uma bobajada dizer que o Exame de Ordem gera lucro para a OAB. Ele gera ônus. Ônus político, ônus pessoal. Alguém gosta de ver a vida de um jovem, o sonho de um jovem enfrentar uma resistência? Eu não gostaria. É uma tarefa que, te digo, faço com dor. Mas a gente está protegendo a sociedade. Eu estou dizendo para a sociedade que existe um patamar mínimo de qualidade, de qualificação, que o advogado que vai pegar a carteira vermelha que foi de Sobral Pinto, que foi de Evandro Lins e Silva tem que ter.

ConJur — Em quatro meses, mais de 7 mil vagas de cursos de Direito foram autorizadas…

Felipe Santa Cruz — Não só é muita coisa… Veja, eu não defendo o modelo clássico, não sou um elitista, não defendo esse espírito brasileiro do ‘bonito era quando todos nós estudávamos em Coimbra’. Sou de uma família que tem advogados há mais de 200 anos. Não é esse o modelo que defendo. Agora, nós temos de ter um ensino com oportunidade a todos, e o Direito realmente transforma vidas. Nós temos um ensino básico muito ruim. Nós temos que admitir que nem todos vão poder advogar. Essa que é a verdade. Nem todos vão estar em condições de exercer uma função que é absolutamente indispensável, como está na Constituição, a Justiça.

ConJur — O senhor pretende manter um diálogo com o MEC?

Felipe Santa Cruz — Sim, com o MEC, com as universidades privadas, com as universidades públicas. O nosso papel aqui é dialogar, dar pareceres. Inclusive com o presidente Jair Bolsonaro, historicamente um adversário do Exame de Ordem. Por meio de interlocutores, tenho tentado fazer chegar a ele a importância do exame ao país. Nossos pareceres, na maioria das vezes, não têm sido ouvidos. Agora, você pega uma pequena cidade do interior com cinco faculdades de Direito, como está a situação no Paraná. No interior do Paraná, quase todas as cidades têm pelo menos duas faculdades de Direito. O Paraná está quase com o mesmo número de candidatos à OAB que o Rio de Janeiro, que é um estado muito maior populacionalmente. Temos um modelo sem planejamento, gestão. Precisamos saber aonde se quer chegar com o ensino superior no Brasil. Senão nós vamos ter isso aí: faculdades de R$ 99, R$ 49 de matrícula. É um estelionato com o jovem.

A gente tem casos de pessoas que vendem um pequeno apartamento, um pequeno sítio para pagar o curso, o que é uma coisa belíssima. Mas, se a essas pessoas não se está entregando o produto, isso cabe ao Estado brasileiro, não cabe à OAB. A OAB tem que garantir que a advocacia seja de qualidade ética, e isso nós vamos fazer. Dói, digo novamente, me dói. Mas é a nossa missão e nem tudo na vida é prazeroso. Deus queira que um dia tenhamos um ensino tão qualificado que todos possam receber a sua carteira ao final do ensino. Não é a realidade do Brasil hoje.

ConJur — E sobre esses jovens advogados, acha que tem que ter um piso nacional?

Felipe Santa Cruz — Acho que estamos evoluindo para uma posição de valorização da advocacia, sim. Nós não podemos proletarizar a advocacia. Como ela cresceu muito, passou de 1 milhão de advogados, a porta do concurso público, que era uma saída para parte da juventude, se fechou, e vai se fechar cada vez mais. O governo baixou medidas agora criando dificuldades para a abertura de concurso público. A própria crise fiscal impõe dificuldades. Acho que é um papel nosso, sim, ter uma discussão aprofundada para que o advogado não explore advogado, o homem não seja o lobo do homem. É dura a discussão, mas eu venho fazendo há muitos anos, dialogando, conversando com diretores jurídicos, conversando com a advocacia. No Rio, nós construímos o piso ainda no início do século. Ou seja, sempre defendi que seja uma atuação nossa, sim.

ConJur — A sua chapa recebeu críticas por não ter uma mulher na diretoria.

Felipe Santa Cruz — Com absoluta razão. Respondo que estão todos com absoluta razão. Esse é um processo histórico. Eu ouvi da ministra Cármen Lúcia que a diferença do Judiciário é que aqui é um ambiente machista, mas não é preconceituoso. Eu fiquei feliz, e acho que na minha geração as coisas evoluíram muito… Eu sou de um tempo que política de Ordem se fazia no bar com uísque. Não havia porta aberta à mulher na OAB. Nós sabemos que é um processo cultural de transformação, que tem que passar inclusive pela transformação das nossas formas de escolha. Por que não há mulheres na minha diretoria? As pessoas não sabem que a diretoria, na verdade, é uma diretoria formada por um integrante por região. A pessoa chega à diretoria quando ela tem a maioria da sua região. Porque esse processo não é um processo escrito, é um processo entre nós pactuado. Eu sou o representante do Sudeste.

Nós tínhamos apenas uma presidente seccional na gestão passada, mulher, que hoje é uma das mais valorosas colaboradoras, que é a Fernanda Marinela. Ela cuida de toda a comunicação do Conselho Federal, foi presidente da OAB Mulher e conquistou a cota de 30% aqui na Ordem. Nós estamos evoluindo. Nós temos uma comissão formada por duas conselheiras que está discutindo a ampliação da diretoria. Nós vamos criar os meios para que a gente possa superar algo que é gritante. É uma maioria, sim, de homens numa classe que é 50/50. Mas isso tem que se transformar em todos os lugares, não só na OAB. Tem que ter uma transformação no escritório de todos nós. Eu sou casado com uma advogada que sempre foi melhor que eu em tudo. Ela passou no vestibular na minha frente, na minha turma, terminou doutorado antes, virou sócia nacional do escritório antes, foi conselheira da Ordem junto comigo, titular, na mesma geração, no mesmo ano. No momento em que tivemos filho houve um pacto familiar onde ela entendeu mais confortável cuidar do escritório e da casa e eu tive mais liberdade para fazer política. Será que isso é certo? É aquilo que eu estava falando, falo com o exemplo da minha casa, não sei. Agora, é um processo cultural e transformador que está se dando em 10, 20 anos numa geração em que nós temos que viver.

ConJur — Na discussão do quinto constitucional, a OAB sempre lutou para que quando tivesse um número quebrado no percentual fosse arredondado para cima. Aqui, no conselho pleno, no momento da discussão da cota, foi arredondado para baixo.

Felipe Santa Cruz — Acho que isso pode ser ajustado, vai ser ajustado. A grande dificuldade desse cálculo é como nós vamos manter também a personalidade federativa da Ordem. O Rio de Janeiro tem o mesmo peso do Acre e do Amapá, São Paulo tem o mesmo peso do pequeno estado… Há um processo histórico-político da Ordem pelo qual é mais fácil você garantir o papel da mulher… Tanto que é assim na legislação eleitoral, você não exige que uma mulher seja eleita prefeita de São Paulo em sucessão ao homem, exige? Você exige é a proporcionalidade do número de candidatos. A classe escolhe. Eu disputei uma eleição, a minha primeira, jovem, contra uma grande advogada, e ganhei a eleição. A classe achou que eu era o nome que deveria ser presidente, e ela cheia de qualidades. Então, assim, a diferença da diretoria do Conselho Federal ao fim e ao cabo é um processo majoritário. Esse é o nosso desafio.

Sabemos que temos que ter mais mulheres. E acho que a grande solução se dará naturalmente. Não estou fugindo do meu ônus de evoluir na discussão da base da advocacia, na mudança cultural, garantir cada vez mais a participação de mulheres. Mas, veja, a cota tem uma gestão e nós já temos uma maioria absoluta de vice-presidentes. Porque esse processo vai se dando. Provavelmente, na próxima gestão nós teremos mais mulheres presidentes, depois nós teremos mais conselheiras federais e, naturalmente, teremos a participação paritária, que é o que todos perseguimos. Mas isso não é para nos acomodarmos, porque a gente sabe que há um preconceito claro que tem que ser vencido, que é um preconceito silencioso. Cada foto lotada de homem me incomoda. 

ConJur — Em entrevistas da ConJur com os presidentes das seccionais, muitos deles disseram que o gargalo da advocacia é a primeira instância. Como enfrentar isso?

Felipe Santa Cruz — Sim. São duas questões. Nós temos que sair, sim, do cômodo exercício da litigiosidade. A advocacia brasileira é uma advocacia litigiosa e nós fomos criados para brigar. Eu acredito que nós temos que ser canais de solução de litígios. Nossos escritórios devem ser isso. Não podemos deixar para o Judiciário todas as expectativas de uma população carente, com 200 milhões de habitantes, cheia de anseios por direitos. Não há Judiciário, fiscalmente falando, capaz de ter esse tamanho. Claro que ele pode evoluir na administração, usando os meios eletrônicos, sendo mais eficiente, isso tudo nós vamos discutir. Acho que também é um dever de casa nosso, que é a evolução das alternativas, novas soluções, fazendo dos nossos escritórios esse ambiente ético e organizado, capaz de resolver diretamente com outro colega esse litígio, usar as formas de solução que se ampliam nos cartórios.

No aspecto específico do Judiciário tem faltado essa visão central da primeira instância, a compreensão de que é lá na vara que boa parte dos conflitos se dão. É uma minoria que chega aqui ao Supremo. E aí você tem que ter isso como uma força de investimento. Como o poder no próprio Poder Judiciário não está na base, não são os juízes os donos desse poder. O poder político institucional está na cúpula do tribunal. É papel nosso apontar a necessidade de investimento na base, a falta de juízes, a falta de estrutura que ainda há em muitos tribunais, principalmente os tribunais de Justiça de muitos estados do Brasil que ainda são muito frágeis nesse atendimento, mesmo nas capitais. Há um fenômeno nos últimos anos que é o fechamento de varas no interior. Diz que tem pouca distribuição, mas você tem pouca distribuição porque ali não tem um juiz de fato. Tem um juiz substituto, que quase não vai… Aí você diz que aquela vara não é viável. Poxa, mas a Justiça não busca lucro, mas estabilizar aquelas relações. O nosso papel nisso é apontar. E os presidentes seccionais têm feito isso com muita propriedade.

ConJur — O senhor mencionou no seu discurso de posse e aqui no gabinete tem a placa de Marielle Franco, vereadora do Rio executada há um ano. Assumir hoje essa postura, levantar a bandeira dos direitos humanos te torna basicamente alvo também de um setor da população que hoje colocou esse ramo como inimigo.

Felipe Santa Cruz — Os direitos humanos são talvez o mais importante passo civilizatório. As pessoas não entendem isso. Sinceramente, só me cabe ser pedagógico e explicar o porquê. E aí, sinceramente, não me interessa. A função da Ordem sempre foi a defesa dos direitos humanos. Se eu sentasse nesta cadeira e ficasse em paz com o assassinato… Marielle é o símbolo maior disso tudo porque ela era vereadora da minha cidade, da segunda maior cidade do país, uma pessoa de origem de comunidade, que venceu através dos instrumentos que a democracia criou, teve acesso à minha universidade, a PUC, pôde estudar na mesma universidade que eu, filho da classe média alta da cidade, uma militante dos direitos humanos. Se nós nos calarmos diante disso, o mundo que nós estamos gestando não nos interessa. E aí eu trairia, efetivamente, o meu juramento. O que eu tenho dito para as pessoas que não compreendem isso é que existe um juramento da Ordem. Vai lá ler o Estatuto da OAB… Senão, viramos um sindicato, uma autarquia de conselho disciplinar, que têm a sua missão, é muito importante, mas não é a missão histórica da OAB na sociedade brasileira, que é a defesa da democracia, das minorias, dos direitos humanos.

ConJur — Por que os direitos humanos foram colocados nesse lugar?

Felipe Santa Cruz — As pessoas estão muito frustradas, têm muito ódio. Um movimento desse gerou o nazismo. Mais do que entender se o nazismo é de esquerda ou de direita, o que é uma bobagem, porque é óbvio que é de direita, é entender que o ser humano, quando está desesperado, sem um prato de comida, costuma buscar soluções autoritárias. Ele tem ódio, ele carrega frustração. Esse episódio que está acontecendo nas nossas escolas, universidades, uma realidade de violência que traz angústia. É um momento de angústia, e o nosso dever é a defesa também desse papel histórico daqueles que defendem as minorias. Vai ter, sim, aqui na minha sala a placa com o nome da Marielle.

ConJur — Quando o povo está nessa angústia e começa a pedir por viradas autoritárias, o que fazer?

Felipe Santa Cruz — Permanentemente mostrar ao povo que, primeiro, a Constituição é o fruto histórico desse processo democrático, e permanentemente mostrar às pessoas a importância da democracia e tentar resgatar neste momento algumas palavras que estão em desuso: solidariedade, amor, compaixão. Eu acredito que todos nós podemos ser despertados cotidianamente para o drama do outro. Isso é o Direito.

Napoleão dizia que o problema é esse, as pessoas, num momento de crise, têm facilidade de esquecer os direitos e passam a se pautar por interesses. O nosso desafio é que o interesse de sobrevivência de cada um seja permanentemente refletido na nossa condição humana. E aí resgatar a empatia, a solidariedade, o amor, a capacidade de diálogo. São, digamos assim, armas libertadoras. E vamos continuar fazendo isso, pois esse é o papel da Ordem.

Eu tenho aqui atendido todo mundo. Num único dia eu atendi o procurador federal Deltan Dallagnol, que gentilmente veio aqui me explicar sobre a fundação que o Ministério Público de Curitiba pensou em fundar, e nós nos opusemos — estamos, inclusive, com um amicus curiae no Supremo sobre essa matéria —, e o MST. E aí estranhei que os dois tinham pautas parecidas. Um Ministério Público muito radicalizado na persecução e o MST, através de João Pedro Stédile, veio pedir a desapropriação unilateral da fazenda do João de Deus. Eu defendo que o João de Deus ainda tem direito ao seu devido processo legal, como acho que, também, os acusados, em Curitiba, por terríveis que tenham sido seus casos, desvios milionários do dinheiro do povo brasileiro, merecem também o devido processo legal. Isso que nos une, isso que nos faz uma civilização.


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