Participação das mulheres na política: é preciso avançar e não retroceder
Ordem dos Advogados do Brasil
Conselho Federal
Comissão Nacional da Mulher Advogada
Comissão Especial de Estudo da Reforma Política
Comissão Especial de Direito Eleitoral
NOTA TÉCNICA N. 1/2020
I. Introdução
A Comissão Nacional da Mulher Advogada – CNMA, a Comissão Especial de Estudo da Reforma Política e a Comissão Especial de Direito Eleitoral da OAB Nacional, elaboraram a presente Nota Técnica1 com o objetivo de analisar os aspectos jurídicos do Projeto de Lei n.º 4.213/2020, de autoria da Deputada Carol de Toni (PSL/SC), em trâmite perante a Câmara dos Deputados, que se propõe a alterar a Lei n.º 9.504/97 (Lei das Eleições), especificamente para extinguir a reserva mínima de 30% das vagas para mulheres nas candidaturas para mandatos eletivos preenchidos pelo sistema proporcional.
O projeto epigrafado traz a seguinte redação:
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º. Esta Lei extingue a reserva mínima de 30% das vagas para mulheres nas candidaturas para mandatos eletivos preenchidos pelo sistema proporcional.
Art. 2º. O § 3º do art. 10 da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 10. …………………………………………………………
.………………………………………………………………….
§ 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido poderá definir livremente o percentual de candidaturas que será reservada para cada sexo.
.……………………………………………………………” (NR)
Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data da sua publicação.
A justificativa utilizada pela Deputada no presente projeto de lei, dispõe que apesar de louvável o incentivo à participação feminina na política, é inegável que apenas uma parcela muito pequena das mulheres de fato, se interessa por desenvolver atividade político-partidária. Ainda aponta que para cumprir a cota prevista em lei, muitos partidos políticos acabam tendo que praticamente implorar para que pessoas do sexo feminino aceitem se candidatar a uma vaga no Poder Legislativo. E ainda que cumprida a cota de gênero no momento do registro de candidatura pelo partido político, o simples fato de ter havido desistência voluntária de determinada candidata no decorrer da campanha gera a cassação integral da chapa de candidaturas para aquela eleição.
Diante dessa tentativa de retrocesso, visando a contribuir com o debate democrático, apresenta-se a presente nota técnica que gizará, em síntese, sobre as seguintes balizas:
II – As cotas de representação no sistema eleitoral brasileiro
Apesar das mulheres representarem 52,5% do eleitorado nacional, o Brasil é o país na América do Sul com a menor representatividade feminina no parlamento: as mulheres ocupam apenas 15% das cadeiras na Câmara dos Deputados e 13% no Senado. Nas últimas eleições gerais, apenas uma mulher elegeu-se governadora (Fátima Bezerra no Rio Grande do Norte) e no pleito municipal de 2016 tivemos 13,5% de vereadoras eleitas e 11,6% de prefeitas.
No ranking mundial, o Brasil, segundo dados recentes apresentados pela União Interparlamentar (2019), ocupa a 133a. posição, ficando atrás de países como o Afeganistão, Iraque e Paquistão, os quais tradicionalmente discriminam e negam direitos às mulheres.
O Brasil, desde os meados da década de 90, implementa a política de cotas destinada a garantir a participação da mulher na política, fazendo-o, inicialmente, por meio da Lei n.º 9.100, de 1995, que, ao regular as eleições municipais, previa em seu artigo 11, parágrafo 3o., o preenchimento obrigatório por mulheres das vagas das listas pelos partidos ou coligações no percentual mínimo de 20% (vinte por cento): “Vinte por cento, no mínimo, das vagas de cada partido ou coligação deverão ser preenchidas por candidaturas de mulheres.”
Em 1997, a Lei Geral das Eleições (n.º 9.504), em seu artigo 10o, parágrafo 3o., estendeu a abrangência da exigência percentual às eleições para a Câmara dos Deputados, Câmara Legislativa e Assembleias Legislativas. Substituiu a expressão contida na norma revogada “mulheres” por “candidaturas de cada sexo”; majorou o percentual mínimo naquela previsto para 30% (trinta por cento), todavia, em lugar da obrigatoriedade no preenchimento das listas, passou a prever a obrigatoriedade da reserva de vagas: “Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo.”
Diante da ineficiência do comando legal para alcançar em termos concretos a mens legis incrementando a participação feminina na política, já que, consoante a norma positivada, as agremiações e coligações não estavam mais compelidas a preencher as vagas das listas com mulheres e somente a reservá-las, em 2009, por meio da Lei n.º 12.034, procedeu-se à nova reforma legislativa.
Os partidos e coligações passaram, então, a ser obrigados à preencher o mínimo de 30 (trinta por cento) e o máximo de 70 (setenta por cento) das listas com as candidaturas de cada sexo: “Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo.” (artigo 10, § 3o)
Não obstante a imperatividade da cota de gênero nas listas das agremiações, os pleitos posteriores à Lei 12.034 demonstraram sua ineficiência para trasmudar, em igual proporção, as mulheres candidatas em mulheres eleitas, ante ao descumprimento da norma de regência.
Consoante informações divulgadas pelo próprio Tribunal Superior Eleitoral, no ano de 2014, a proporção geral de candidatura era de 68,955 (homens) para 31,05% (mulheres). Naquelas eleições, o descumprimento do mínimo legal foi alarmante, tendo se verificado em 11 dos 32 partidos analisados: DEM (29,49%), PCO (24,42%), PDT (29,65%), PHS (29,94%), PROS (28,45%), PRTB (28,27%), PSDC (29,34%), PSOL (29,61%), PT do B (29,68%) e SD (26,61%). À exceção do PSTU, que alcançou o percentual de 40% de candidaturas femininas, os 20 partidos restantes ficaram entre 30,08% (PSB) e 33,92% (PMN), percentagem próxima ao limite mínimo legal.
Nas últimas eleições municipais (2016), do total de prefeitos eleitos, 4.898 foram homens e apenas 641 mulheres. No legislativo, em 1286 dos 5.568 municípios brasileiros todos os vereadores eleitos foram do sexo masculino. Um contrassenso, pois, desses 5.568 municípios, 2963 possuem a maioria feminina no eleitorado. Em termos percentuais, de um universo de 35 partidos, constatou-se haver 68,11% de candidatura masculinas contra 31,89% de candidaturas femininas. Para além do exposto, os dados do Tribunal Superior Eleitoral apontaram que 18.244 candidatas a vereadora naquele pleito não tiveram um voto sequer, 12,5% do geral.
Os números apenas atestavam que as cotas, por si só, não eram suficientes, embora mais do que necessárias. Assim, evidenciado que a política é um campo masculino e que são estruturadas formas de estabelecer mais obstáculos à mulher neste espaço2, é a Justiça Eleitoral uma instituição de promoção e efetivação da democracia e, desta forma, do incentivo à participação feminina na política. Por essa razão e em virtude da importância do tema, cientes de que campanhas viáveis são indispensáveis para a promoção da igualdade, o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5617, em 2018, determinou que a distribuição de recursos do Fundo Partidário destinado ao financiamento das campanhas eleitorais direcionadas às candidaturas de mulheres deve ser feita na exata proporção das candidaturas deste gênero, respeitando o mínimo de 30% de candidatas previsto na Lei das Eleições.
Ou seja, no mínimo 30% dos valores oriundos do Fundo Partidário a serem utilizados nas campanhas eleitorais, passaram a ser destinados a campanhas de mulheres. Naquela oportunidade, a Ministra Rosa Weber, ao acompanhar o voto do Ministro relator Luiz Edson Fachin, foi categórica ao atestar que “A participação feminina só vai aumentar no campo da política por meio de políticas públicas e incentivos trazido pelas leis, para assegurar igualdade formal”.
Naquele mesmo ano, aplicando a mesma ratio decidendi adotada pela Suprema Corte na ADI 5617, com prevalência ao direito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) e à igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF), a Ministra Rosa Weber relatou a Consulta n.º 0600252-18.2018.6.00.0000 formulada ao Tribunal Superior Eleitoral, respondida afirmativamente determinando que a distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), previsto nos artigos 16-C e 16-D, da Lei das Eleições, deveria respeitar o patamar legal mínimo de 30% de candidaturas femininas, nos termos do artigo 10, § 3º, da Lei 9.504/97.
Da mesma forma, os partidos deveriam garantir no mínimo 30% do tempo de propaganda gratuita para candidaturas femininas. Restou assegurado, ainda, que havendo percentual mais elevado do que 30% de candidaturas femininas, o mínimo dos valores e do tempo da propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão, destinado às respectivas campanhas, deveria ser majorado.
Ao logo do voto da Min. Relatora foi possível evidenciar o papel impulsionador da Justiça Eleitora para a mudança no cenário político quanto a participação feminina, não apenas com a resposta afirmativa da mesma, mas também com o enaltecimento de decisões proferidas no exercício da jurisdição, as quais sinalizam o posicionamento rigoroso quanto ao cumprimento das normas que disciplinam essas ações afirmativas sobre o tema.
Nas eleições seguintes (realizadas naquele mesmo ano de 2018), observando os valores absolutos investidos nas campanhas femininas através dos dados informados pelo Tribunal Superior Eleitoral, verificou-se que enquanto em 2014 a receita média de campanha das mulheres representava cerca de 27,8% da dos homens, em 2018 essa receita representou 62,4%. Neste contexto, as mulheres atingiram no Brasil seu recorde de representação no Congresso Nacional, com 15% das eleitas.
Resta evidente pela simples análise do aumento de 50% no número de mulheres eleitas em 2014 e em 2018 que campanhas financeiramente viáveis são indispensáveis para a efetivação das necessárias cotas de gênero. Não há como se sustentar a simples alegação de desinteresse das mulheres quando dados do Tribunal Superior Eleitoral de 2019 afirmam que já somos 44% das filiações nos Partidos Políticos3.
A participação da mulher na política passa por diversas esferas, desde a conscientização da sociedade acerca da importância da inclusão de representantes do gênero feminino, como de políticas públicas de incentivo para a participação destas agentes políticas. Sendo certo que a Constituição Federal rejeita todas as formas de preconceito e discriminação impondo, ainda, a promoção da igualdade de fato, a promoção da representatividade nos espaços de poder é essencial para a consolidação da democracia e legitimação das decisões tomadas.
III – Conclusões
O projeto de lei n.º 4.213/2020, como demonstrado ao longo da presente nota técnica, representa retrocesso inadmissível ao sistema de cotas e a participação da mulher na política.
A imagem do poder parlamentar no Brasil é essencialmente masculina, seu desenho sugere a figura do homem branco, rico e bem sucedido como cara desse poder. A cota de gênero, na linguagem do voto, se insere na necessidade de políticas afirmativas que possam redesenhar esse quadro.
Porém é ingênuo crer que a mera inserção da cota no sistema de construção de candidaturas seria suficiente para reconfigurar a cara do parlamento. O sistema de candidaturas no Brasil tem como ator principal o partido, e em uma política partidária, com viés nitidamente androcêntrico, é ilusório acreditar que uma simples obrigação legal de ocupação de candidaturas com cotas de gênero já seria suficiente para redesenhar o parlamento.
A atuação mais efetiva da justiça eleitoral nestes casos coloca no ponto limítrofe a separação dos poderes, contudo, a não observância da necessária participação das minorias, principalmente em se falando de mulheres – maioria populacional – prescinde de medidas urgentes e imediatas, este recorte populacional sofre com a estrutura social machista – e, por vezes, misógina – tendo inúmeros direitos rechaçados, sem nem mesmo passar pela arena de debate.
Assim, sendo certo que a política de cotas no processo eleitoral foi apenas o primeiro passo que demos no sentido de seguirmos com os compromissos assumidos na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em 1995 em Beijing, tendo, desde 1995 sido efetivadas diversas outras ações afirmativas visando a inclusão da mulher na política. Retirar a cota eleitoral neste momento é dar um passo atrás nessa caminhada, é transformar em algoz uma estratégia que por tempos foi apenas mais uma vítima da visão androcêntrica que comanda as estruturas de poder no país.
Como dito, as cotas foram pensadas como um instrumento para aumentar o número de mulheres eleitas para os cargos públicos, elas fazem parte de uma série de medidas afirmativas de reservas de espaços e recursos que possibilitem o alcance do objetivo. Desde 1995 a sociedade brasileira vem apresentando ao parlamento brasileiro medidas que efetivem a participação da mulher nos espaços de poder, mas infelizmente todas as vezes que nos aproximamos da efetivação das medidas surgem opositores inconformados com a possibilidade de dividirem os espaços com quem representa metade da população brasileira, as mulheres.
A necessária representação das minorias é um dos princípios do sistema democrático e constitucionalmente previsto, de modo que se pode dizer que sua participação no debate público e na composição das instituições políticas é inerente ao próprio desenho constitucional da democracia4.
Acabar com o sistema de cotas é desrespeitar a democracia, é desrespeitar as Convenções Internacionais, bem como pelos Consensos de Brasília de 2010 e Consenso de Santo Domingo em 2013 das quais o Brasil é signatário e acima de tudo é desrespeitar o desejo das brasileiras e brasileiros que desejam que a democracia seja respeitada e aplicada em sua forma plena.
Ante o exposto, o projeto de lei n.º 4.213/2020 deve ser rejeitado.
Brasília, 19 de agosto de 2020.
DANIELA DE ANDRADE BORGES
Presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada – CFOAB
LUCIANA NEPOMUCENO
Presidente da Comissão Especial de Estudo da Reforma Política – CFOAB
EDUARDO DAMIAN DUARTE
Presidente da Comissão Especial de Direito Eleitoral – CFOAB
MARCELO WEICK POGLIESE
Coordenador-Geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político – ABRADEP
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1 Nota técnica elaborada com contribuições das integrantes da Comissão Nacional da Mulher Advogada Marisa Gaudio, Mariana Lopes, Márcia Álamo, Ariana Garcia e Cláudia Sobreiro.
2 BIROLI, Flavia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e Política. São Paulo: Boitempo, 2014. p. 104.
3 http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2019/Junho/estatistica-do-tse-traz-panorama-da-filiacao-partidaria-no-brasil – acesso em 21/08/2020
4 SALGADO, Eneida, Desiree. Princípios Constitucionais Eleitorais. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 145.
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